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O alto comissário do Golbery não toma jeito

24/02/2013

por Tarso Genro, publicado originalmente no blog RS Urgente em 24 de fevereiro de 2013

Como Elio Gaspari foi do velho Partidão e depois se tornou confidente do General Golbery, fazendo, a partir daí, uma carreira de jornalista mordaz e corregedor de todos os hábitos do país, ele se dá o direito de não só inventar tolices nas suas colunas, como também enganar os mais desavisados.

Defende as suas teses principalmente a partir da falsificação da posição dos seus adversários de opinião. Para defendê-las, Elio sempre desqualifica os seus adversários com textos de estilo ferino, que não raro beiram a difamação. Os que se sentem agredidos raramente se defendem, não só porque ele não publica as respostas na sua coluna, mas porque talvez temam despertar nele uma ira ainda maior, que também não abre espaços para o contraditório.

Já fui alvo algumas vezes das suas distorções e falsificações, mas sobre este tema da reforma política preciso responder formalmente, porque se trata de um assunto extremamente relevante para o aperfeiçoamento democrático do país, sobre o qual existem divergências elevadas, tanto dentro da esquerda como da direita democrática.

A estratégia usada por Elio Gaspari para promover suas crônicas foi muito comum na época da ditadura, quando o SNI – através de articulistas cooptados – recheava de informações manipuladas a grande imprensa, sobre a “subversão” e as “badernas estudantis”. O regime tentava, desta forma, tanto manter o controle da opinião pública, como dividir a oposição legal e a clandestina, num cenário em que povo já estava cansado do regime. Elio Gaspari parece que se contaminou com este vício e combinou-o com uma arrogância olímpica: desqualifica todo mundo, não respeita ninguém, o que pode significar uma volúpia de desrespeito a si mesmo, ensejada pela sua trajetória como jornalista com idéias muito próximas de um ceticismo anarco-direitista.

Vários dirigentes políticos, tanto da oposição como da situação – da direita e da esquerda – que não estão satisfeitos com o sistema político atual, debatem uma saída: uma reforma política para melhorar a democracia no país. Todos sabemos que não existe um sistema ideal e perfeito, mas que é possível uma melhora no sistema atual, que pode tornar mais decente a representação e os próprios partidos. Este debate para melhorar a democracia e dar maior coerência ao sistema de representação tem despertado a santa ira de Elio Gaspari, que dispara para todos os lados, mas nunca diz realmente qual é a sua posição sobre o assunto.

No seu artigo “O comissariado não toma jeito”, no qual sou citado nominalmente como defensor de fisiologismos, ele atinge o auge na deformação das opiniões de pessoas que ele não concorda. Vincula, inclusive de maneira sórdida estas opiniões a dirigentes políticos condenados na ação penal 470, para aproveitar a onda midiática que recorre diariamente a estas condenações, não só para desmoralizar a política e os partidos, mas para tentar recuperar os desastrados anos do projeto neoliberal no país, nos quais, como todos sabemos, não ocorreu nenhuma corrupção ou fisiologismo.

As deformações de Elio são explícitas quando ele examina dois pontos importantes da reforma política: o “voto em lista fechada” e o “financiamento público” das campanhas eleitorais. Sobre o voto em lista “fechada” ele argumenta, em resumo, que a “escolha deixa de ser do eleitor”, que vota numa lista preparada pelo Partido, que captura o seu direito de escolha.

Pergunto: será que Elio não sabe que a escolha na “lista aberta” (sistema atual), é feita, também, a partir de uma relação de nomes que é organizada pelos Partidos? E mais: será que Elio não sabe que a diferença entre um e outro sistema é que, no atual, o voto vai para a “fundo” de votos da legenda e acaba premiando qualquer um dos mais votados da lista, sem o mínimo nexo com a vontade do eleitor? Repito, qualquer um da lista, sem que o eleitor possa saber quem ele está ajudando eleger!

Na lista fechada é exatamente o contrário. O eleitor sabe em quem ele está votando. E sabe da “ordem de preferência”, que o seu voto vai chancelar, a partir do número de votos que o Partido vai amealhar nas eleições. O eleitor faz, então, previamente, uma opção partidária – inclusive a partir da qualidade da própria lista que os Partidos apresentaram – e fica sabendo, não só quem compõe a lista do seu partido, mas também a ordem dos nomes que vão ter a preferência do seu voto.

Na lista aberta, ao invés de crescer o poder político dos partidos – que Elio parece desprezar do alto da sua superioridade golberyana – o que aumenta é o poder eleitoral pessoal de candidatos que, neste sistema de lista aberta, carreiam os votos dos eleitores para qualquer desconhecido. Por mais respeito humano que se tenha por figuras folclóricas que ajudam eleger pessoas com meia dúzia de votos, não se pode dizer que a sua influência pessoal possa ser melhor que a influência das comunidades partidárias, por mais defeitos que elas tenham.

A tegiversação sobre o financiamento público das campanhas não é ridícula, porque é simplesmente uma falcatrua argumentativa. Elio diz que este tipo de financiamento não acabará com o “caixa 2” e que tal procedimento vai levar a conta para o povo, que ele chama gentilmente de “patuléia”. Vejamos se estes argumentos são sérios.

Primeiro: ninguém tem a ilusão de acabar com o “caixa 2”, que acompanhará as campanhas, enquanto tivermos eleições. O que devemos e podemos buscar é um sistema que possa diminuí-la, substancialmente, através – por exemplo – de um controle “on line”, de todos os gastos das campanhas, num sistema financiado por recursos conhecidos e previamente distribuídos aos partidos.

Este sistema certamente diminuirá a dependência dos partidos em relação aos empresários e permitirá um controle mais detalhado dos gastos, pois cada partido terá um valor previamente arbitrado, para ser fiscalizado à medida que os recursos forem sendo gastos. Reduzir, portanto, a força do poder econômico sobre as eleições, este é o objetivo central do financiamento público.

Quanto à transferência das despesas para o povo, qualquer aluno do General Golbery – digo aqui da modesta situação de fisiológico que me foi imputada – sabe que as contribuições dadas pelas empresas aos partidos e aos políticos, são “custos” de funcionamento de uma empresa, que integram o preço dos seus produtos e serviços, que são comprados pelo consumidor comum ou pelo Estado.

Quem paga por tudo, sempre, é o povo que trabalha e compra e o Estado que encomenda, compra e paga. O defensor da patuléia, portanto, não está defendendo nem a “viúva” metafórica nem o Estado concreto. Está, sim, defendendo a atual influência do poder econômico sobre os processos eleitorais, de uma forma aparentemente moralista, mas concretamente interessada: acha que o sistema assim está bem. Uma forma de fisiologismo altamente disfarçado. O alto comissário do Golbery não toma jeito.

Tarso Genro é governador do Estado do Rio Grande do Sul

Mensagem aos educadores gaúchos

15/10/2012

por Tarso Genro, publicado originalmente na Zero Hora, em 15 de outubro de 2012

Em 15 de outubro de 1827, foi instituída a primeira Lei Geral da Educação, destinada a povoar o país de “escolas de primeiras letras”. A escolha da data como Dia do Professor guarda, assim, uma relação entre o direito à educação para a cidadania brasileira e o reconhecimento de um de seus mais importantes protagonistas: o professor.

Hoje não é diferente. O papel do educador transcende sua atividade profissional, pois, para além de sua prática escolar cotidiana, ele incide sobre os rumos da sociedade e do processo civilizatório. Por isso, todos os esforços no sentido de valorizar essa dedicação ficarão sempre aquém do que essa categoria profissional merece.

É possível, porém, ter políticas públicas que traduzam o compromisso dos gestores do Estado para com a valorização profissional dos educadores. Uma das primeiras medidas adotadas na fase inicial de nossa gestão foi a de reajustar os salários em patamares superiores aos obtidos pelas lutas dos educadores nos últimos anos. Apesar das contingências orçamentárias, hoje nenhum professor gaúcho ganha menos do que o piso nacional de R$ 1.451, o que foi possível mediante pagamento de parcela completiva para os que ganhavam menos do que este valor.

Também estamos garantindo para todos reajustes e ganhos reais da ordem de 76,68%, até 2014, num esforço para alcançar níveis salariais cada vez maiores, uma conquista dos educadores brasileiros, organizados na sua entidade de classe, a CNTE.

Todos sabemos que as mudanças verdadeiras, em qualquer âmbito social, para se tornarem reais e permanentes, são seletivas e processuais. Nesse sentido, o programa do atual governo destaca os seguintes eixos: a) Recuperação Física da Rede e Modernização Tecnológica; b) Reestruturação Curricular e Formação Continuada; c) Qualificação e Democratização da Gestão; d) Valorização Profissional.

Nossa política de formação busca fortalecer os conhecimentos teóricos dos profissionais e valorizar suas práticas, considerando a escola como espaço formativo e as universidades como parceiras nesse percurso. Em relação à carreira, ampliamos a parte da jornada que destina tempo para atividades de planejamento individual e coletivo, bem como para tarefas atinentes ao acompanhamento da aprendizagem dos alunos.

Nesta data, queremos reafirmar o compromisso com a valorização dos educadores gaúchos, de sua identidade profissional e também seu protagonismo social.

Uma gestão democrática na escola, um currículo adequado para inserção dos alunos na cidadania e no trabalho, o acolhimento da comunidade escolar, estes são exemplos da nossa concepção de educação transformadora. Tais mudanças qualitativas passam pelas mãos do professor, seus saberes e sua visão de mundo. Por isso, queremos, neste 15 de outubro, homenagear os educadores em nome do governo e da sociedade gaúcha.

Tarso Genro é Governador do Estado do Rio Grande do Sul

O julgamento que não terminará

15/10/2012

por Tarso Genro, publicado originalmente na Carta Maior, em 15 de outubro de 2012

Em alguns momentos da história o Direito é testado a respeito da sua verdadeira força constitutiva na vida das pessoas, de um grupo social determinado ou de uma nação. Compartilhei com o Supremo alguns destes debates, na condição de ministro da Justiça e lembro-me de dois deles, que foram lapidares. Testaram os limites do projeto democrático em curso que, como se sabe, não partiu de uma ruptura do regime militar, mas de um acordo “pelo alto”, legitimado pelo processo constituinte, que consagrou as liberdades políticas e produziu a vigorosa Constituição de 88.

O “teste” da importância da Constituição na vida de um povo é tanto político, como jurídico. O teste mais forte, no entanto, sempre faz o “político” e o “jurídico” convergirem para o que grandes juristas designam como “força normativa da Constituição”. Esta força normativa é a síntese entre a “Constituição real” (pela qual o direito realiza-se orientado não somente pela lei, mas também pela força do dinheiro, da cultura, da possibilidade que os grupos e classes tem de influenciar os tribunais), e a “Constituição formal”, ou seja, com aquelas influências limitadas no disposto como direito positivo, declarado pelo poder constituinte.

A demarcação da “Raposa Serra do Sol” e o debate que ficou conhecido como “revisão da Lei da Anistia” (a mídia propagou errônea e deliberadamente que pretendíamos a “revisão” da Lei e não a sua “interpretação”), foram dois destes casos. Ambos poderiam ser decididos livre e coerentemente, na sistemática legal atual, para qualquer lado: poder-se-ia decidir que o território era contínuo e assim beneficiar as comunidades indígenas (que foi a decisão do STF), ou dizer que o território indígena deveria ser descontínuo e segmentado e, desta forma, beneficiar-se-ia os que ali se localizavam de boa fé, cometendo crimes ambientais e ocupando terras da União.

Tanto no primeiro como no segundo caso, dois valores se opunham. No caso “Raposa” o direito imemorial dos indígenas, de um lado e, de outro, a posse de boa fé, das famílias instaladas para produzir para o mercado e para a sua subsistência. No segundo caso (“Anistia para os torturadores”), dois valores também estavam claramente em oposição: o respeito pleno, integral e imprescritível aos direitos humanos, por qualquer estado em qualquer circunstância, de um lado e, de outro, um suposto contrato político na transição. Este contrato, segundo o caminho então tomado pelo Supremo, permitira – “legalmente” – que os promotores ou, no mínimo, os coniventes com as torturas, pudessem “contratar” a anistia para os que torturaram e mataram nos cárceres do estado. E o fizeram contra custodiados indefesos, fora do cenário da luta revolucionária, na qual estes já estavam militarmente derrotados.

A dupla e às vezes múltipla possibilidade de interpretação de um dispositivo constitucional gera oportunidades de escolha do intérprete, a partir de valores que estão pré-supostos na sua história individual e social. Nos casos de grande repercussão sobre os “fundamentos do estado de direito” (igualdade perante a lei e inviolabilidade dos direitos), estas escolhas são sempre de natureza política e balizadas pelas grandes questões históricas que o país enfrenta. Vejamos um caso interessante e muito apropriado, para se refletir sobre o que está acontecendo no país com o chamado julgamento do “mensalão”.

É um caso de direitos civis, famoso na jurisprudência da Suprema Corte Americana (109 U.S. – 1883), no qual a interpretação da Lei dos Direitos Civis de 1875 – que outorgara o direito dos negros americanos usarem hospedarias, teatros, transportes públicos e outros espaços públicos e privados – opunha dois valores bem nítidos: o sistema federal, em construção dolorosa depois de uma sangrenta guerra civil, de um lado, e, de outro, a dignidade da pessoa humana sustentada pela Lei dos Direitos Civis. Principalmente no sul do país, com a reação dos remanescentes racistas e escravagistas – cuja força política persistiu até a década de 60 do século XX – vários estados se negavam à aplicação da Lei dos Direitos Civis e se amparavam no “pacto federativo”, cujas cláusulas permitiriam a independência “interpretativa” sobre o alcance das referidas normas de proteção dos direitos civis.

Nesta atmosfera tensa, a Suprema Corte sentenciou que a 14ª. Emenda não havia dado um mandato claro ao Congresso para “proteger” os direitos civis, “senão o poder para corrigir os abusos dos Estados”. Esta decisão, que diferencia “proteção”, de “correção de abusos”, no caso concreto – das polícias, dos brancos e dos governos – contra os negros, mostra a brutal distinção na aplicação da lei e da Constituição, que pode se originar dos valores que orientam a interpretação de um Tribunal.

O Juiz Bradley – relator do processo – escolheu a visão da processualidade que, segundo ele, estaria contida na 14ª Emenda, pois estava convicto que deveria ocorrer “algum estágio” na transição do ser humano, de ‘coisa’ (o negro), para que todos chegassem à condição do ‘ser humano’ (branco), estatuto reservado para parte da população naqueles estados. O Juiz Harlan, que divergiu, denunciou a trama interpretativa: “Não posso resistir à conclusão que a substância e o espírito da recente Emenda à Constituição tem sido sacrificados pela crítica verbal, hábil e engenhosa”.

O valor “federalismo”, naquele caso concreto, foi escolhido para fundamentar uma decisão racista, “atenuando” os efeitos da 14ª Emenda, que respaldara abertamente os direitos civis e sintetizara uma “revolução democrática”, em curso na nação americana.

O Ministro Celso Mello (Relator da Extradição 633-9, República Popular da China – Pleno – DJ 16.02.01-unânime) já passou por situação análoga, na qual negou a extradição de cidadão chinês, acusado de crimes graves naquele país, porque ali os Tribunais “não levam em consideração os argumentos da defesa, nem consagram o princípio da presunção da inocência”. Neste julgamento o Ministro Celso Mello optou claramente – na escolha entre valores que se apresentam em cada processo concreto – por um valor fundante do Direito Penal, nas sociedades democráticas: “a presunção da inocência”. Ou seja, entre o valor “aplicação correta e formal do direito interno chinês”, de um lado (que seria uma das possibilidades para dar legitimidade à extradição) e, de outro lado, o valor “princípio da presunção da inocência” (que serviria para negar a extradição) o princípio da “presunção da inocência” teve o peso decisivo.

O Ministro Lewandowsky, que escolheu o princípio da presunção da inocência e o fundamentou, nos casos de Genoino e Dirceu, tem sido hostilizado, não só na imprensa como em alguns lugares públicos. O ministro Joaquim Barbosa, guindado à condição de herói nacional pela revista Veja, tem sido aplaudido e incensado pela imprensa em lugares públicos. Conhecendo e respeitando a integridade de ambos, imagino que mesmo em situações – que são meramente conjunturais – diferentes, devem estar se perguntando porquê tudo isso. Ambos cumpriram os seus deveres como Ministros da Corte mais alta da República, mas recebem reações diferenças, na sociedade e na imprensa. Não pende, sobre nenhum dos dois, qualquer mancha moral e ninguém duvida dos seus conhecimentos e da sua capacidade como juristas, mas eles tem um tratamento jornalístico e social desigual. Por quê?

Quero opinar um pouco sobre isso, porque creio estarmos num momento importante da vida democrática nacional. E a minha opinião não é sobre fatos e condutas, que determinaram o processo judicial em julgamento, porque, a não ser a respeito de Genoino, de quem fui amigo pessoal por décadas (poderia depor a respeito da sua integridade moral e sua honestidade e sobre a convicção de que não teve nenhuma conduta dolosa), não convivi, não conheço a personalidade, a vida pessoal e mesmo política de maneira suficiente, de nenhum dos outros réus. Sobre José Dirceu e os demais réus, não posso ter juízo “jurídico” sobre os fatos que ensejaram a ação penal, mas posso afirmar, também sobre José Dirceu -que é a personalidade mais forte do julgamento – que certamente foi condenado sem obediência ao princípio da presunção da inocência.

O processo judicial em curso, pela massiva campanha condenatória que precedeu o julgamento, tornou-se um processo político e altamente politizado. Foi anulado dramaticamente o significado pedagógico e moral, que ele poderia ter para o futuro democrático do país, se o princípio da presunção da inocência fosse observado e o espírito de linchamento não tivesse sido disseminado, como foi. Não se trata, em conseqüência, de “defender” – como foi inculcado no senso comum – Genoino e Dirceu. Ou de atacar, tal ou qual grupo de comunicação, ou mesmo de discutir os argumentos do Procurador Geral ou da defesa dos réus, por dentro do processo: o verdadeiro julgamento foi no paralelo político.

Trata-se, portanto, de avaliar como chegamos – em plena democracia política – a uma situação que lembra a hipotética ou real manchete de um jornal soviético, na era stalinista: “Hoje serão julgados e condenados os assassinos de Kirov.” Lewandowky e Joaquim Barbosa estão sendo eventualmente recebidos de maneira diferente, nos lugares que freqüentam, pelos mesmo motivos: os réus já tinham sido julgados. Um, pelas suas convicções, disse que a sentença midiática estava -vejam bem- apenas parcialmente errada. Outro, pelas suas convicções, disse que ela estava totalmente certa. O julgamento judicial foi um julgamento político e a síntese, que resultou do embate entre valores pré-supostos na interpretação, foi doce para a direita política irracional que dominou a mídia, mas amarga para a esquerda que vem governando o país dentro da democracia.

O embate de valores, que ocorreu neste julgamento, é exemplar para a reforma democrática que nos desafia de imediato, foi o seguinte: de um lado o “princípio da presunção da inocência” e, de outro, o controle “unilateral da formação da opinião”, que, ao não conseguir provas suficientes para condenação, enquadrou o senso comum e o próprio Supremo, na certeza de que o julgamento é feito antes e “por fora” dos Tribunais. E, assim, serão incensados os que aceitarem este controle e serão amaldiçoados os que se rebelarem contra ele.

Talvez este julgamento tenha uma virtude: sirva para coesionar um campo democrático amplo, para atacar a principal chaga da democracia brasileira, que é o sistema político atual, fundado no financiamento privado das campanhas e nas alianças regionais sem princípio. Se não atentarmos para isso, rapidamente, merecemos este julgamento, no qual a presunção da inocência foi sacrificada no altar da “teoria do domínio funcional dos fatos”.

Na verdade, como o julgamento foi principalmente político, embora dentro de todos os parâmetros da legalidade constitucional, ele não terminará em breve. Vai continuar. E o principal erro que poderemos cometer será utilizar esta jurisprudência contra os adversários da revolução democrática em curso, desejando e propagando que eles devem ser condenados sem provas, com linchamentos prévios pela mídia. Aliás, isto é impossível, porque eles é que tem o domínio funcional dos fatos através da grande mídia.

Tarso Genro é Governador do Estado do Rio Grande do Sul

A crise atual e o futuro da democracia como ideia socialista

04/07/2012

por Tarso Genro

Para bem entendermos a crise do sistema financeiro global, iniciada em 2008, bem como as suas consequências sobre os sistemas democráticos do mundo é recomendável uma reflexão mais humilde e mais modesta do que as promovidas pelo ímpeto de anunciar a “crise final” do sistema capitalista.

A esquerda que não aceita pensar o mundo com as categorias usadas antes do fim do socialismo real, deve recusar análises que iniciavam com as tradicionais disjuntivas: transição pacífica ou ruptura; reforma ou revolução; social-democracia ou socialismo proletário; teoria da dependência ou revoluções nacionais democráticas, naquele período, com “apoio soviético”.

A contra-revolução (ou contra-reforma neoliberal) iniciada nos anos 70, além de ter sido amplamente vitoriosa, também obteve um adicional estratégico: aguçou o que Boaventura Santos apontou como “uma tensão entre democracia e capitalismo, resultante, por um lado, do caráter expansivo da democracia que, ao início, excluía as mulheres e também os trabalhadores do jogo democrático (…) e, por outro lado, a relativa inflexibilidade do capitalismo (…) que permitiu concessões que não ameaçassem sua reprodução ampliada de longo prazo”.

É mais adequado pensarmos disjuntivas mais reais. Sugiro que as pensemos não a partir da teoria “pura” da luta de classes, mas a partir do conflito entre subjetividades emancipatórias democráticas, de um lado e, de outro, tentações autoritárias de direita. Estas, oportunizadas pela oposição extrema, já presente no contexto político europeu, entre a democracia política e uma nova espécie de fascismo, que concilia controle midiático, consumismo irracional e autoritarismo dos executivos.

Pensemos numa reflexão humilde porque as crises têm oportunizado menos avanços no contrato social europeu e suscitado mais recuos, neste contrato, concretizados com apoio em eleições periódicas regulares em regiões de plena democracia política. O predicado da humildade serve para processar a análise, como registrou Carvalho da Silva , pois “estamos numa União Europeia em que a ‘crise é sistêmica’, logo a contaminação é geral e a resposta tem de ser de todos, mesmo que se expresse de formas diferenciadas conforme as culturas e as realidades sociais (…)”. É uma advertência que se torna duplamente importante se considerarmos que a pauta das para a crise (com os meios de legitimação democrática) são os próprios promotores da crise.

Pensemos também na necessidade de uma reflexão mais modesta, para reconhecermos os limites das interpretações puramente economicistas do capitalismo e assim interpormos na reflexão outros campos de análise. Campos que ampliem horizontes e lidem com categorias até agora não testadas, para encetarmos uma nova revolução democrática: uma revolução que transite das premissas de 1789, para a efetividade dos direitos buscada em maio de 1968.

Trata-se, portanto, de compreender em profundidade o capitalismo “financeirizado” atual, considerando as possibilidades do “constitucionalismo transformador” (Boaventura) do novo “capital cultural” do sul, da libertação da “violência simbólica” (Bordieu), da refutação da colonização da política pela mídia e, principalmente, para ensejar condições de adoção de novas “práxis”, a serem integradas na ação política de esquerda.

Assim, as lutas em torno da questão democrática não podem na atualidade lidar só com as possibilidades escritas das constituições formais. Não podem limitar-se apenas às generalidades da “inclusão social”, mas devem ser construídas em conjunto com uma nova subjetividade democrática, cujo resgate só pode ser fundamentado pelos valores históricos do socialismo: igualdade, solidariedade, libertação das opressões e hoje, também, da cultura da dominação midiática e das violências implícitas, presentes na cultura da sociedade de mercado. Trata-se, portanto, de um futuro promovido por uma sociedade “conscientemente orientada”.

Não é irrelevante para analisar as democracias atuais e pensar o futuro da democracia, registrar que a expansão do domínio do capital financeiro globalizado vem acompanhado pela implantação de regimes com democracia política e, também, de um certo grau de constitucionalização de direitos. Regimes que são, ao mesmo tempo, mediações para a compatibilização da democracia com a tutela do capital financeiro e também mediações para compor com as resistências à eliminação das políticas de proteção social.

O positivismo-naturalista, que esteve presente na dogmática versão do marxismo da “Academia de Ciências da URSS”, sempre apresentou o capitalismo como uma espécie de sequência “natural-fatal” da História, cuja sucessão, também “natural-fatal”, seria o socialismo. Por isso, quanto ao predicado da “modéstia” lembro que, historicamente, tanto os socialistas-marxistas quanto os sociais-democratas de esquerda nunca deram relevância à formulação de uma autêntica Teoria do Estado e do Direito, que não fosse apenas uma réplica economicista das teorias do Iluminismo.

Assim, o capitalismo passou a deixar de ser apresentado como uma autêntica “civilização” , com uma enorme “riqueza de sentidos” capaz de “expropriar” a própria subjetividade operária e transformá-la. Na nova condição ela deixa de ser classe sujeito da revolução, para ser classe contratada pela ordem. Este contrato, ao mesmo tempo que mantém a classe como integrante da ordem nas sociedades de “classes médias” (através do acordo no pacto social-democrata), também a faz classe sem a qual é impossível construir uma saída democrática com sentido plebeu.

O “capital simbólico”, promovido nestas novas condições históricas da revolução democrática gerará a “transfiguração de uma relação de força em relação de sentido” . Poderá promover, pela economia reformada, por uma nova hegemonia ideológica na sociedade, a ação política consciente dos sujeitos do trabalho e emancipação: alimenta-se, então, um novo modo de vida cada vez menos consumista e alienado, não ensejado pela economia de mercado, mas por homens conscientemente orientados.

Nestas condições os novos padrões tecnológicos, que exigiram uma total reorganização dos processos de trabalho, não mais permanecerão subjugando os interesses dos produtores e o capital não mais apropriar-se-á dos avanços tecnológicos. A captura dos valores da produtividade não mais estarão à disposição para enriquecer as classes médias superiores e especialmente as novas elites, tanto das classes médias superiores como empresariais.

É certo, no entanto, que há necessidade de uma agenda unitária para as esquerdas. Quando se fala em agenda “unitária” em termos globais, porém, não se quer dizer “fechada” ou “totalizante”, a ponto de criar a ilusão de que os movimentos “esquerdistas”, naquele sentido já clássico, possam – por exemplo – valorizar eleições e governos, considerar relevante promover conquistas dentro da ordem e apoiar a integração entre lutas sociais e ações de governo: políticas concretas de redução das desigualdades, reformas educacionais dentro da democracia política e crescimento econômico, com inclusão social e produtiva. Isso só pode ser considerado importante pelas formações políticas que supõem estratégica e questão de princípios, atualmente, defender a democracia acossada pelo novo fascismo midiático. Nele a internacionalização radical da política, vinculada inicialmente à teoria do proletariado universal, será realizada, com apoio político manipulado, pelo anti-humanismo universal do capital financeiro, que já captura estados e suprime soberanias.

O processo em curso mudou a realidade que a esquerda deve lidar, porque estas “revoluções produtivas” vem alterando o modo de vida, logo a subjetividade cotidiana do conjunto de grupos e frações de classes, de todos os setores assalariados e não assalariados. Uma estratégia da esquerda, que combine a defesa da democracia política com efetividade dos direitos fundamentais conquistados pelas lutas operárias do século XX, deve considerar, portanto, esta nova realidade do desenvolvimento capitalista: a reestruturação produtiva do capital concentrou renda e, ao mesmo tempo, enriqueceu setores médios; mudou o perfil do mundo do trabalho e também reorganizou as formas de compra da força de trabalho; fragmentou os interesses dos assalariados, tanto nas regiões mais desenvolvidas do sistema capitalista global, como nos chamados países emergentes.

Aos excluídos, em geral, alocados como exércitos de reserva da produção industrial, somam-se -nos dias de hoje- os excluídos do conhecimento, subordinados à cultura de massas; os excluídos dos novos padrões tecnológicos e das técnicas de acesso ao conhecimento; os excluídos de uma vida segura no mercado. A vanguarda do trabalho produtivo e socialmente “útil” já está submetida a um funil de passagem, “para cima”, cada vez mais estreito e com diferenciações salariais internas cada vez mais gritantes. Inclusive aquelas baseadas em novos tipos de sub-empregos, precariedades e intermitências. Refiro-me à situação do mundo do trabalho, não somente assalariado, daqueles países que formam o núcleo e a periferia industrializada do “sistema-mundo”, nos lugares onde existem chances de ocorrer movimentos políticos e lutas sociais mais agudas, com alguma capacidade de interferir no sistema de poder.

Neste quadro, as “mensagens”, as “palavras-de-ordem” tradicionais e análises clássicas da esquerda, alicerçadas no que foi conformado pelo marxismo dominante (como ideologia do proletariado clássico), não mais se reportam aos verdadeiros dramas do mundo do trabalho e dos assalariados em geral. Os trabalhadores estão, tanto espremidos pelo desemprego tradicional, como chamados a operar nas novas formas “livres” de prestação de serviços, subordinados à desvalorização do trabalho mecânico da fábrica tradicional e, ainda, integrados no império do trabalho imaterial nas redes. A predominância da ética da descartabilidade vem liquidando com a velha ética do trabalho fabril, que chamava as consciências para o público e para a não privatização das emoções. Nestes territórios as mudanças expressivas na produção material e imaterial também já não respeitam, integralmente, as fronteiras entre tempo de trabalho e tempo privado: entre vida cotidiana e processos do trabalho, entre lazer e trabalho.

O contrato do “trabalho livre” pelo resultado – oposto à submissão política no interior da fábrica moderna – se é verdade que liberta os assalariados da tutela patronal direta como ocorre com os trabalhadores da vanguarda tecnológica (os ligados aos “bits”, à info-digitalidade e à informação, por exemplo) e cria, ao lado deles, legiões de excluídos e baixos assalariados, vem também intensificando as formas mais duras de expropriação do trabalho imaterial. Estes métodos de dominação impulsionam a adesão a novos “modos de vida”, cuja sociabilidade tende a reproduzir, em tempo integral, a exploração da força de trabalho “imaterial”, pela invasão de tarefas no tempo de lazer.

As novas formas de produção também vêm espremendo a responsabilidade social das empresas que responderam a conquistas das lutas sociais-democratas e socialistas – pois estão cada vez mais alheias à preservação de um estoque mínimo de trabalhadores qualificados – e, ainda, vem aumentando o controle pelo resultado e a fragmentação de tarefas. Tanto nos processos de concepção como na realização. Assim, fica mais reduzida a subordinação direta contratual: reduz-se a integração do trabalhador na vida coletiva da empresa e também a responsabilidade empresarial sobre os contratos, mas aumenta a subordinação geral, de classe, pois os movimentos coletivos dos trabalhadores ficam mais fragilizados.

Nesta hipótese, há uma transcendência da dominação tradicional da subordinação fabril, para uma dominação completa da vida por inteiro. Tal contexto abarca a natureza do consumo, a redução do espaço público para a fruição do tempo livre, inclusive com a uniformização de uma indumentária que democratiza a aparência dos setores assalariados, aproximando-a dos padrões das classes privilegiadas.

É notório que, cada vez mais, o próprio lazer é “produzido” como lazer mercantil, ditado e ocupado por inteiro pela acumulação. Os mega-shows dos mega-artistas, com mega-públicos e mega-custos, constituem os mega-espaços “rebeldes”, onde rebelião, mercadoria e consumo, dominação e liberdades formais, erguem os novos templos das culturais globais. Estas, já iconizadas num espaço onde tudo é aparente identidade coletiva, mas, para cada um dos indivíduos ali presentes, tudo parece ser a expressão da sua concreta singularidade.

Lukács dizia, para justificar a passividade dos operários alemães, perante as propostas revolucionárias, que eles ainda “tinham anõezinhos nos jardins”, para atrair “sorte” e espantar o “mal”, que seria o símbolo do seu atraso. Isso corresponderia, hoje, a dizer que os potenciais de rebelião de grande parte da juventude, contra as injustiças, estão temporariamente suspensos pelas luzes feéricas dos concertos de Elton John e pelas lembranças das belas canções de Fred Mercury, embora estes artistas não tenham gerado a sua arte para esta finalidade. É lazer, cultura, artes visuais com novas tecnologias, subjetividades pulsantes, mais drogas e álcool (não como livre opção existencial, mas como decurso da lógica do mercado): modo de vida capturado para o anonimato em busca de um sentido.

Os novos e antigos movimentos sociais, que estão no centro da questão democrática, os “sem” teto, terra, proteção social, os hóspedes das praças, os rebeldes das redes sociais, os que não cabem no sistema, os indignados, querem os seus direitos e a sua parte no sistema. A maior parte destes setores, originários da classe média fragmentada, nem imagina que as suas demandas integrais por inclusão, não podem ser acolhidas no sistema, pois a transição para o “cume” só pode ser molecular. Podem compreender, porém, que é possível uma transição de parte deles -de alguns grupos que estão no “fora”, para o “dentro” do sistema, abrindo fendas na sua ossatura férrea. No caso , podendo gerar novos mecanismos democráticos de gestão no sistema, alargando a influência da ação política dos “de baixo” para a resolução da crise que os expeliu.

É o capítulo da disputa pela a hegemonia, portanto, para instituir políticas de desenvolvimento e políticas públicas de coesão social, que apontem para um novo Contrato Social, cuja bases não podem ser somente as instituições republicanas clássicas, mas as combinações destas instituições com as formas de democracia direta, presenciais e virtuais. O sistema atual é, por natureza, limitadamente democrático e negativamente centralizador, e a sua unicidade supranacional é determinada pela força coercitiva do capital financeiro globalizado. A participação direta na gestão pública é, por natureza, democrática e aberta: a sua unidade no plano global só pode ser sustentada pela democracia política, que repele – dentro dos quadros da constituição política – o autoritarismo e a centralização burocrática inerentes ao sistema.

Só a democracia política exercida de forma plena, sobre a gestão do Estado e na definição das suas políticas públicas globais, é capaz de expor a desumanidade das contradições que separam, cada vez mais, regime democrático e capitalismo. O desequilíbrio entre o regime de acumulação, forçado pela especulação, e a necessidade de tomada de decisões públicas no âmbito da democracia, contida na democracia da pura representação, institui desigualdades cada vez mais graves, entre as classes sociais, internamente, e entre os estados nacionais na geoeconomia global.

Estas desigualdades também ocorrem na escala salarial interna das empresas e na estrutura de salários do funcionalismo estatal. São diferenciais de renda que também são apropriados – a partir das “sobras para poupança” dos altos salários – para fortalecer os laços do capital financeiro com esta nova massa de “rentistas”. Ela faz fluir parte dos seus recursos para a ciranda do lucro financeiro.

As formas e os meios pelos quais as crises serão solucionadas -sejam as soluções engendradas pela soberania estatal ou pelas agências de risco- é que determinarão a correlação de forças no próximo período. Só a recuperação da força normativa e da legitimidade política do Estado Democrático é que pode gerar um centro aglutinador de poder para enfrentar, concomitantemente -na esfera da política e da economia- uma nova saída neoliberal, ainda mais autoritária e elitista, para a crise do capital, que certamente estender-se-á por um longo período.

A crise emendou a vitória do tatcherismo sobre a esquerda européia com o fim da URSS; a crise do “sub-prime” com o “euro”; a ocupação do Iraque com o fracasso do Presidente Obama; a emergência do Brasil no cenário mundial com a “flexibilização” da social-democracia européia. O que pode, neste contexto, unificar distintas matizes da “nova” e da “velha” esquerda -contra as políticas de decomposição das funções públicas do Estado- é o exercício, pelo Estado, de políticas antagônicas às ditadas pelas agências privadas, que hoje orientam as políticas de Estado e são responsáveis pela crise. Não é a derrubada do Estado para a instalação de uma nova ordem, que, de resto sequer tem suporte social para configurá-la, que está na ordem do dia.

As demandas por direitos, dos movimentos sociais que lutam pela água, pela defesa das suas culturas, das suas terras, do ambiente natural protegido da lógica mercantil; as lutas pela inclusão educacional, pelo direito ao trabalho produtivo ou improdutivo (este voltado para recuperação da natureza depredada), para o cuidado dos velhos e das crianças; as lutas para melhorar as prestações sociais do Estado; as lutas dos trabalhadores por seus direitos; as lutas democráticas pela transparência e pela ética pública, não terão resultados práticos nem estimularão demandas mais complexas, se não tiverem resultados no cotidiano das pessoas, que estão subjugadas pela ideologia do mercado.

Para que o resultado possa ocorrer, porém, é preciso subtrair o Estado da tutela do capital financeiro, que crescentemente esgota a sua capacidade de financiar políticas públicas de dignificação da vida comum. Isso certamente não ocorrerá fora da política, seja ela processada na sociedade civil, para interferir sobre a gestão do Estado, seja ela intra-estatal, a saber, a que se processa entre as instituições e agências políticas, administrativas e financeiras do próprio Estado.

A integração, portanto, das “lutas sociais” com as “lutas políticas” tradicionais, promovidas pelas esquerdas modernas e pós-modernas, pode ser baseada numa agenda comum, que remeta para a recuperação das funções públicas do Estado. Mas ela não surtirá efeito sem que haja também um confronto que tenha diversas origens no cenário global, seja através de eventos como o Fórum Social Mundial, de manifestações pontuais (ainda que impotentes até agora), como as dos indignados espanhóis e dos rebeldes e Wall Street, ou mesmo avanços como as reformas do neo-constitucionalismo boliviano, com a sua árdua tarefa de compatibilizar modos de vida secularmente arraigados e “arcaicos” – tanto do ponto de vista do capitalismo como do socialismo (por razões diferentes) – com a república, a modernização produtiva e a agregação de valor.

Num outro lugar destas lutas, mas olhando para uma mesma direção, estão as eleições periódicas nas democracias capitalistas mais avançadas, como as que ocorreram na França. São elas que, até agora, tem tido potência para -no âmago do Estado- tanto dar sustentação, como desenvolver contrapontos fortes ao neoliberalismo. Os governos nacionais, regionais e locais, que se opõem à “tutela grega” podem ser, juntamente com os movimentos sociais e os partidos de esquerda e do centro democrático, os “agendeiros” do próximo período de lutas, como o Brasil fez na América do Sul.

Embora nosso país tenha começado um novo modelo econômico e desenvolvido uma política de articulação global, para reduzir os efeitos da dominação dos bancos e das agências privadas sobre a nossa economia, sabemos que o desfecho deste processo não é, nunca, exclusivamente nacional. Seu desfecho, ou é vitorioso também no espaço político global ou será derrotado.

A extorsão permanente do nosso trabalho e do desenvolvimento industrial e comercial do país, continua sendo processada através da drenagem de riquezas, através dos juros e serviços da dívida, que ajudam o sistema especulativo global a manter-se forte. A “confiança” dos investidores no Brasil -refiro-me aos investidores da especulação financeira- é a confiança do “senhor” sobre o “escravo”, pois o “senhor” sabe que o “escravo” não tem outra saída, por enquanto, que não a de continuar submetido.

Se os partidos de esquerda não reduzirem as suas taxas de pragmatismo e não atentarem para esta nova etapa estratégica -que deverá ser enfrentada pelo nosso Estado Democrático e suas instituições políticas- tudo que obtivemos até agora poderá ser perdido. O fortalecimento democrático, financeiro, político e defensivo-militar, do Estado brasileiro (combinado com ousadas políticas de combate às desigualdades sociais e regionais), é a grande contribuição que o nosso país pode dar ao mundo para uma saída da crise por fora da tragédia grega.

Tarso Genro é Governador do Estado do Rio Grande do Sul